sexta-feira, agosto 18, 2017

Chet Baker — jazz & cinema

Ethan Hawke
Há quase um ano e meio, assinalava-se aqui a trajectória de um filme que suscitava muita curiosidade e expectativa: Born to Be Blue tinha Ethan Hawke a interpretar Chet Baker! Infelizmente, confirmaram-se as mais cépticas previsões. Ou seja: o filme nunca chegou às salas portuguesas. Agora, anda discretamente a circular pela televisão por cabo, para mais identificado por um título português, no mínimo, equívoco: O Homem dos Blues. Fica o essencial: importa descobrir tão frágil diamante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Agosto), com o título 'Chet Baker contra Chet Baker'.

A canção Born to Be Blue, composta em 1946 pela dupla Mel Tormé/Robert Wells é um lendário standard do jazz, conhecido através de versões de Dexter Gordon, Ella Fitzgerald, Helen Merrill, Ray Charles ou Chet Baker. Born to Be Blue é também o título de um belo filme canadiano de 2015, sobre o trompetista Chet Baker, precisamente, agora disponível na televisão por cabo (TVCine).
Como qualquer outro filme, também este vale por si, independentemente das condições (ou, como agora se diz, das plataformas) da sua divulgação. Ainda assim, como não lamentar que tão delicado objecto de cinema surja no pequeno ecrã sem ter passado pelas salas escuras? A sua odisseia comercial surge também assombrada pelo infeliz título português, O Homem dos Blues. Mesmo tendo em conta as muitas contaminações entre jazz e blues (recorde-se o valor pedagógico da série televisiva The Blues, produzida por Martin Scorsese em 2003), a definição de Chet Baker como “homem de blues” carece de pertinência histórica e estética.
Será preciso acrescentar que o “blue” de Born to Be Blue não é uma classificação musical, antes remete para um misto de desencanto e melancolia? De facto, a existência de Chet Baker (1929-1988) foi uma tragédia suspensa entre o confronto com os grandes intérpretes negros do seu tempo (a começar por Miles Davis) e uma violenta dependência da heroína. Robert Budreau, argumentista e realizador de Born to Be Blue, encena-o nesse ziguezague entre uma cruel pulsão auto-destrutiva e a nunca vencida utopia da música.
Como intérprete de Chet Baker, Ethan Hawke encontra, aqui, um dos maiores desafios da sua carreira. Desde logo, pela aposta em “reproduzir” o olhar triste, a fragilidade da voz e a pose cansada da personagem. Mas sobretudo porque seria demasiado fácil apresentar Chet Baker através de algumas explicações “psicológicas” mais ou menos redentoras.
Daí o jogo de espelhos que Budreau propõe, arriscando para além das obrigações “factuais” de uma biografia. Born to Be Blue oscila entre a vida vivida e a vida imaginada (o filme dentro do filme em que Chet Baker teria interpretado o seu próprio papel), numa ambivalência em que a personagem se define contra a sua própria identidade. Nesse sentido, este é um filme eminentemente jazzístico, não pelos factos narrados, mas pela sua própria construção: trata-se de saber que variações dramáticas são possíveis a partir do tema “Chet Baker” — mesmo quando a melodia inicial parece perder-se pelo caminho, há uma emoção que persiste.