terça-feira, agosto 22, 2017

Aqui e algures com Régis Debray

O mais recente livro de Régis Debray tenta pensar o nosso devir americano no interior de uma nova civilização de lugares virtuais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Agosto).

O novo livro de Régis Debray, Civilisation (ed. Gallimard), tem um subtítulo eloquente — “Como nos tornámos americanos” — que, em todo o caso, convém não reduzir a uma oposição simplista entre “prós” e “contras”. Não se trata de desistir da Europa, mas de não esquecer que “a Europa não terá tido a política do seu pensamento”. Comentário à burocracia de Bruxelas? Não. Antes uma citação das Notas sobre a Grandeza e a Decadência da Europa, escritas por Paul Valéry em... 1931.
O livro ajuda-nos a perceber que uma cultura, por mais enraizada num território, não é uma barreira automática aos avanços de uma civilização — a história ensina-nos mesmo que há civilizações que avançam, preservando as componentes culturais dos territórios que conquistam.
Régis Debray
Neste mundo de “portáteis e fibra óptica”, aquilo que mudou foi o próprio território. Primeiro, porque o império das imagens se tornou omnipotente e omnipresente — há mesmo milhões de pessoas que, através de Facebook ou Instagram, consideram “normal” partilhar com o planeta as imagens do seu mundo privado (desse modo contribuindo para o enfraquecimento político do próprio conceito de privacidade). Depois, porque, por Skype ou qualquer outros aparato virtual (incluindo o directo televisivo), foi anulada a distância física entre o lugar que cada um ocupa e o lugar do seu semelhante. Na prática, apagou-se a diferença simbólica entre o estar aqui e o responder algures.
“Aqui e Algures” (Ici et Ailleurs) é, justamente, o título de um filme de Jean-Luc Godard, concluído em 1976 a partir da reorganização crítica de imagens recolhidas na Palestina, em 1970. Godard lembrava uma verdade cuja pertinência moral não se dissipou: não é por ir recolher imagens “algures” que posso dizer que, estando “aqui”, sou detentor de uma verdade definitiva sobre aquilo que registei. A minha relação com os outros começa na consciência da distância, geográfica ou espiritual, que deles me separa (ou aproxima, se for caso disso).
Tal problemática está inscrita no trabalho de Godard desde os filmes com que observou a França à beira de Maio 68. Veja-se ou reveja-se La Chinoise (1967). Num misto de ternura e crueldade, descobríamos as ilusões dos jovens maoístas, recitando o Livro Vermelho, como nessa imagem em que vemos Jean-Pierre Léaud com óculos cujas lentes reproduzem a bandeira da República Popular da China. Cegueira ideológica? Sim. Mas também um testemunho de uma dinâmica cultural em que o objecto fulcral de comunicação era ainda o livro.
LA CHINOISE (1967)
de Jean-Luc Godard